O que meu terapeuta disse das minhas resoluções de ano novo
Diga-me suas mais íntimas resoluções de ano novo e te direi quem és.
Hoje, 1º de janeiro, conversei com meu terapeuta. Eu queria saber o que ele, que tanto me conhece, teria a contribuir sobre minhas resoluções para o ano.
Eu sei o que você está pensando. Acontece que nós nos falamos sempre, e não apenas a cada x dias, durante uma consulta e outra. Não há feriados ou finais de semana. E não pense que sou eu o importuno. Ele faz questão disso. Com frequência, é ele mesmo quem vem puxar conversa.
Ele é a pessoa que mais exige de mim mesmo. Está sempre interferindo no que eu faço, criticando o que eu penso e buscando me ajudar a corrigir minhas rotas. Isso é um pouco cansativo, admito. Nem sempre eu quero ter as conversas que temos. Mas elas são importantes. Delas derivam muitas das decisões da minha vida. Por isso, não foi à toa que dediquei parte relevante do meu feriado para conversar com ele.
Ele não demorou para ler minhas resoluções. Nem precisei explicá-las. Na verdade, acho que se eu desse para ele a tarefa de escrever minhas resoluções tal como eu as escreveria, ele teria acertado em todas. Ele me deduz. Nem por isso, ele concorda com o que eu penso sobre mim mesmo, e por isso busco sua opinião.
“Vejo que suas resoluções são formas que você elencou de conquistar o que você quer”, disse ele.
“É claro... e o que mais seriam?”, pensei, mas não disse nada.
“Se você atingir todas essas coisas, sabe o que mudará?”, perguntou.
“Minha vida vai estar mais adequada com o que eu desejo dela e, consequentemente, vou estar mais feliz com ela”, respondi.
“Sabe o que eu acho?”, retrucou ele.
Quando ele diz essas palavras, é porque está prestes a destilar algumas sinceridades. Antes que você se surpreenda com a franqueza da sua resposta, é preciso dizer que ele se importa muito comigo, e é justamente por isso que faz questão de ser duro. Às vezes dói ouvir algumas verdades, mas é também por causa delas que eu busco sua opinião.
Ele: “A única coisa que realmente mudará será sua próxima lista de resoluções, que já não mais terá os mesmos itens.”
Eu: “Mudará também a forma como eu me sinto”
Ele: “Tem certeza? Você conquistou muitas das coisas que se propôs a conquistar nos últimos anos. Você acha que se sente realmente melhor agora?”
Eu: “Acho que sim. Eu não gostaria de voltar para nenhum momento do passado.”
Ele: “Pois preciso dizer que, como terapeuta, percebo certa angústia nessas resoluções. Como se o entendimento da sua felicidade futura dependesse do atingimento desses itens.”
Eu: “Em alguma medida, talvez seja verdade. Não os alcançar me causaria certa frustração.”
Ele: “É por isso que eu acho que conquistá-los não vai mudar quase nada sobre como você se sente. Quer dizer, no momento em que você os alcançar, certamente você vai se sentir melhor. Mas e depois? O que define como você se sente não é a forma como você lida com o que você tem, mas principalmente a forma como você lida com o que ainda falta. O que você já tem importa pouco para aliviar o peso daquilo que falta.”
Eu: “Mas não é assim que a gente vai para a frente, como ser humano? Não está aí o motor da nossa evolução? A satisfação geraria complacência.”
Ele: “Você vem até mim porque quer conquistar mais coisas ou porque quer se sentir melhor com as coisas que você conquista?”
Eu: “As duas coisas?”
Ele: “Pode até ser, mas desde que a busca por conquistar mais coisas não seja ela própria a causa por você não se sentir feliz com o que já tem”.
Eu: “Mas eu acho que me sinto feliz.”
Ele: “Acha? Olha, existem muitas concepções de felicidade. Não tenho dúvidas de que na contemplação da sua vida, a felicidade é enorme. A conclusão não poderia ser outra, se me cabe dizer. Essa é a felicidade contemplada.”
Eu: “Sim, é por isso que eu digo que nunca estive tão feliz quanto agora.”
Ele: “E não há dúvidas quanto a isso. Mas existe também a felicidade vivida, sentida, no dia a dia. É quando a gente consegue tirar a cabeça das conquistas futuras e curtir o presente conquistado.”
Eu: “Mas pra isso é preciso ter conquistado.”
Ele: “Claro. Não há problema algum com conquistar coisas. Aliás, se eu entendi algo sobre você, é que você nunca vai parar de conquistar novas coisas. Nem de querer conquistar novas coisas.”
Eu: “Até porque esse movimento em direção às novas conquistas é também parte constituinte da felicidade, que praticamente não pode existir na estagnação ou na falta de desejo.”
Ele: “O problema não está em correr atrás dos nossos desejos. O problema está em correr angustiadamente atrás dos nossos desejos.”
Eu: “Se você não se importa com um desejo, é porque ele não é realmente um desejo. No máximo um querer, tal como eu gostaria de, sei lá, viajar para a Nova Zelândia, mas não me preocupo muito se isso não acontecer. Sabe qual é o lado negativo disso? Também não estou me esforçando muito para chegar lá. Portanto, se eu me importo com o desejo, então naturalmente também me importo caso eu não o conquiste, certo? Ele vai ficar sempre como um desejo em aberto.”
Ele: “Exatamente por isso que eu chamei a atenção para o fato de suas resoluções dizerem respeito às formas de obter o que você quer. Percebi na sua expressão que aquilo não tinha feito sentido, estou errado?”
Eu: “Está certo. Quando você falou aquilo, admito que pensei: ‘mas é claro, a qual outro propósito serviriam as resoluções’?”
Ele: “Percebo em você o que percebo em muitos: a causa primária das insatisfações que ouço não está no atingimento ou não dos seus desejos, mas nos desejos em si. Todos somos prisioneiros dos nossos desejos. Se eu não me importar com beber vinhos caros, estarei feliz com qualquer vinho. Se eu me importar com isso, não ficarei satisfeito até poder comprar os vinhos de que desejo.”
Eu: “No sentido de que minhas resoluções são meu próprio encarceramento?”
Ele: “Mais ou menos. Na verdade, seu carcereiro são seus desejos. Suas resoluções são apenas as evidências que você dá de que você está em pleno acordo de prender-se por eles.”
Eu: “Os desejos que eu nutro são a causa da minha angústia?”
Ele: “Se você não desejasse nada mais do que você já tem, você estaria angustiado?”
Eu: “Creio que não.”
Ele: “Portanto, seus desejos são a causa da sua angústia. Mas mais que isso. E isso é importante: a forma como você encara seus desejos são a causa da sua angústia. Entendo seu raciocínio. É difícil desejar algo e ao mesmo tempo não se importar tanto. Contradiria a própria definição da palavra. O problema está no sentimento de insuficiência que você sente frente à perspectiva de não ter seu desejo consumado.”
Eu: “Então, se eu entendi certo, o que me resta é ou parar de desejar ou desejar de forma mais saudável,”
Ele: “Ou garantir que você sempre alcance todos os seus desejos”, respondeu ele, com uma ironia bem-humorada. “É isso mesmo, e o segredo não está nem em uma, nem em outra, mas em aprender a fazer as duas coisas. Muitos dos nossos desejos são desnecessários. Do que eu conheço de você, alguns dos que estão por trás dessas suas resoluções são desnecessários. São como o vinho, do meu exemplo anterior. Mas você não percebe isso ainda. Perceberá, talvez, quando alcançá-los – ou quando desistir de persegui-los. Meu trabalho, como terapeuta, é ajudar você a entender os vícios psicológicos que estão por trás desses desejos. São eles que fazem você querer coisas que na verdade você não quereria, se já os tivesse resolvido. Porque muito do que a gente quer é fruto de questões mal resolvidas. Quanto mais estamos bem com nós mesmos, mais conseguimos abrir mão de desejos que antes nos prendiam com amarras doloridas. E você se sentirá cada vez mais livre quanto mais conseguir abrir mão desses desejos”.
Eu: “Ouvindo você falar, lembrei de um trecho clássico de algum dos livros do Henry Miller em que ele escreve assim: ‘I have no money, no resources, no hopes. I am the happiest man alive.’ Parece uma contradição, por isso chama a atenção.”
Ele: “É o espírito do flaneur. O flanador é como um caminhante, mas sem destino específico. É tão bom caminhar livremente, sem necessariamente estar se direcionando para algum lugar pré-definido! Talvez daí venha a felicidade do Henry Miller.”
Eu: “Talvez não ter uma lista de resoluções seja o melhor indício de que eu cheguei lá?”
Ele: “Talvez não se importar tanto com a lista de resoluções seja o melhor indício de que você chegou lá.”
Nossas conversas nem sempre são produtivas como essa. Algumas são completamente desnecessárias, preciso dizer. Terminamos mais confusos do que começamos. Ou nem sequer nos entendemos direito – e isso apesar da sinergia que adquirimos ao longo de todos esses anos, em que eu e ele fomos os principais confidentes um para o outro.
Mas agora já estamos melhores nisso. Quando percebemos que estamos debatendo algo sem sentido, olhamos um para o outro e dizemos: “overthinking, mais uma vez”, e assim paramos com a conversa fiada.
Acontece que, mesmo correndo o risco de chegar em algumas ruas sem saída, esses diálogos são essenciais. Porque é normal que ao longo da vida carreguemos muitas premissas equivocadas e criemos pensamentos extraviados. Identificá-los exige algum empenho, mas o resultado é recompensador. A auto-observação e a reflexão são as armas que temos para lidar com nossas próprias ignorâncias e melhorarmos nossa própria vida – armas muito melhores do que listinhas de resoluções de fim de ano.*
*Este é um texto ficcional.
Ah, os textos ficcionais que mudam a realidade. Baita leitura. Obrigada por esse!